Friday, September 10, 2010

Século Vintedois

Era jantar de aniversário do diretor de métrica, homem dos mais rigorosos da firma. O assunto da mesa não poderia ser outro, o escândalo da semana: as câmeras de vigilância haviam flagrado o estagiário que manejava a máquina de mixagem de versos lendo no banheiro uma espécie de ipad arcaico, feito de papel. Nele havia poemas de um tal Edgar Allan Poe, supostamente poeta independente: haveria escrito sozinho os versos!

Dada a complexidade dos poemas o chefe de repartição logo concluiu que seria impossível aquilo ser feito por apenas um homem e fora da escala industrial. Talvez houvesse sido produzido por uma empresa da pré-modernidade, já que lá pelo início do século 21 ainda adotavam esse tipo de produção. Estranho era o fato de aquilo ter sido preservado depois de tanto tempo. O jovem, gaguejando, não soube explicar-se. Começou a suar frio. Após ler algumas linhas o chefe lhe devolveu o objeto: “pode ficar com isso, meu jovem, não tem a menor qualidade”.

O estagiário respirou aliviado enquanto guardava seu arcaico ipad. Eis que deixou cair um papel bem amarelado que apresentava finas linhas azuis paralelas e simétricas. Os olhos do chefe se arregalaram, tinha certeza estar frente-a-frente com um subversivo: estava escrito, em tinta, palavras organizadas em forma poesia. Chamou imediatamente a segurança. Diante da gravidade, o caso foi levado à alta cúpula da Poems Inc. O presidente da empresa não só demitiu imediatamente o aprendiz como encaminhou o sujeito à polícia. O caso era sério, descobriu-se que apesar da inocente aparência o jovem pertencia a uma organização criminosa que produzia poemas individuais assinados com nomes falsos e os distribuía clandestinamente. O marginal está sendo mantido incomunicável e responde a processos por formação de quadrilha, exercício ilegal de profissão, concorrência desleal e falsidade ideológica.

Todos ficaram realmente chocados com o fato de que ali dentro da firma poderiam conviver com um desses terroristas literários que tanto falam a imprensa e a polícia. Ora, imaginem se todo mundo (leia-se: qualquer um!) resolve escrever poesia por sua própria conta e distribuir por aí! Obviamente, aconteceria uma banalização absurda e uma queda de qualidade dos poemas. Gente sem formação profissional nem senso de responsabilidade prestando esse serviço tão vital para o bem-estar social. Logo surgiriam hordas escritores sem técnica atentando contra os bons-costumes, rompendo métricas, quebrando rimas e repetindo essa ladainha de que poesia é arte. E como viveriam eles que estudaram com tanto afinco se as empresas de poemas começassem a falir simplesmente porque agora qualquer um poderia escrever poesia se bem entendesse?!

O diretor de rimas tentou mostrar indignação:

- Deus me livro, digo, Deus me livre...

Não conseguiu esconder o pavor por cometer tal deslize. Poderia ser acusado de subversão. Mas felizmente nenhum dos presentes sabia o que significava a palavra “livro”. A terrível falha, que quase o entregou, passou apenas como um erro gramatical. Menos mal.

O chefe do departamento de temáticas amorosas, um gordo sentado ao seu lado, cochichou em tom profético: "Já não se faz poesia como futuramente".

1 Comments:

Blogger hesseherre said...

Sagaz, muito sagaz...lembrando George Orwell com aquele livro que me deixou muito preocupado pois eu sou de 1937.....hehehe...

12:11 PM  

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