Tuesday, June 24, 2008

O último sopro da paixão

Ele não esperava naquela idade, depois de tantos anos, encontrar a paixão novamente. Depois de ver e viver de tudo. De nascer, engatinhar, andar, despertar a puberdade, virar homem, amadurecer, ter filhos, envelhecer, e ficar viúvo. Pensava que só lhe faltava uma coisa na vida: Morrer.

Eis que encontrou-a algum dia em suas caminhadas matinais rumo à padaria, andando cabisbaixa com um olhar perdido e amedrontado. Foi dos mais tímidos toda a vida mas quando se está idoso já não importa nada, ganha-se o álibi para falar e fazer qualquer coisa que, na pior das hipóteses, sentem pena do velho senil. Foi assim que chamou-a e começou a falar-lhe no meio da rua. Ela correspondeu cordialmente e dali nascia uma linda relação de cumplicidade, nome genérico desse remédio que se chama amor.

Não precisava mais de sexo. Uma vontade que se deixa de sentir não faz falta. A velhice leva alguns prazeres e traz outros. É preciso reinventar as formas de senti-lo. O gozo da idade avançada é ilibidinoso, delicado e diferente. Ele necessitava mais que tudo de uma companhia fiel. Precisava de carinho, muito mais de dar do que receber- e ela, o contrário. A timidez veio intrínseca na personalidade dele e fez-lhe desperdiçar oportunidades de falas e de carinhos que agora despejava sob sua nova amante. Gastava horas falando a ela sobre tantas coisas, coisas da vida, coisas que nunca teve coragem de dizer. Suas histórias de uma vida longa, discreta mas bem vivida. Ela ficava quietinha, escutando com seus olhinhos arregalados. O teatro da vida finalmente oferecera-lhe a oportunidade de apresentar seu monólogo. Num palco de areia com cenário natural de pôr-do-sol e lotação máxima: só ela tinha direito de assistir a peça.

Apesar da beleza do mar e da praia ela estava quase sempre mirando ele, pedindo com o olhar mais um carinho. Ela sempre foi amiga da natureza, nasceu e cresceu abraçada com a liberdade. Acostumara-se à beleza do mundo e agora no fio de vida que restava queria contemplar a graça humana e o carinho que nunca ninguém lhe dera antes. Ele, só depois dos 80 anos foi perceber verdadeiramente o sabor do vento na cara. Na praia, os dois corriam atrás um do outro e outro do um, brincavam-se e rolavam na areia. Faziam por eles mesmos, porque assim se sentiam felizes. Nem percebiam que ofereciam aos que passavam uma lição de vida. Multiplicavam sorrisos e comentários. Era belo aos olhos alheios ver que mesmo com a idade avançada pode-se continuar a viver com a intensidade, espontaneidade e alegria de uma criança. Todos que lá no calçadão os avistavam podiam entender que haviam nascido um para o outro.

E eles não se diziam, entretanto sentiam no fundo que o que o único desejo que tinham era viver juntos até o fim dos dias. Ou até o primeiro deles ir. Só o pensar de que ela pudesse partir antes dele já lhe estremecia o peito e por isso ele desviava o pensamento. Mas no fundo preferia ir primeiro, porque ela era o último sentido que ele encontrara na vida e também porque sabia que ela superaria rápido e ainda poderia ser feliz com qualquer outro que lhe oferecesse cama e afagos. Ele pensava nela e ela não pensava em nada, apenas vivia. Ele tinha muito mais anos vividos, mas ambos já haviam há muito entrado na curva descendente da vida.

O dia tinha nascido há pouco e ela estava deitada no sofá com a mesma cara séria que parecia explodir em sorrisos por dentro. Ele desligou a televisão para ouvir o silêncio. Sentiu que sua hora se aproximava. Enquanto juntava forças para suas últimas carícias ainda disse baixinho e ofegante que ela fora a mais grata surpresa de sua vida. E que ela era na verdade não só companheira, mas sua mãe de morte. Foi há pouco mais de 9 meses que se conheceram e agora aproximava-se o fim da gestação. Pra que ele pudesse nascer para um outro mundo, para o além-vida, que, afinal, devia ser o mesmo lugar de onde veio.

Ela parecia emocionada e entendeu que aquele era o último momento juntos. Lambeu seu rosto e disse: AU-AU. Ele imaginou ou deduziu que ela tentava com toda sinceridade dizer na língua canina “eu te amo”. Ou “eu te amei”, já que era o princípio de seu fim. Ou quem sabe quis falar “eu sempre te amarei”. Antes que pudesse esboçar algum raciocínio filosófico ou gramatical sobre passado, presente e futuro sentiu suas pálpebras pesaram. A vida passou num flash. Fechou os olhos e dormiu para sempre.

1 Comments:

Blogger Mariana Anselmo said...

que lindo!
eu gosto quando você escreve assim! juro que gosto!

besotes chico!

2:17 PM  

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