Grito Literário

Thursday, August 27, 2009

Chapare

Depois de tanto tempo ver todo esse espetáculo de novo fez minha alma flutuar. Sentir outra vez aquela melodia silenciosa enquanto o carro deslizava sob o asfalto entre as montanhas verdes enfrentando a neblina que oculta seus mistérios. Sentir outra vez meu espírito tocar o céu me fez reviver aquele tempo de intensidade que havia virado apenas uma memória.

Chegando ao povoado vi que aquela velha casa de um amarelo suave já não estava ali. Ao canto do que se tornou um restaurante, tocava charango um velho. Levava o chapéu e toda a vestimenta tradicional dos indígenas locais, mas se notava a mestiçagem do seu rosto e o sotaque do quéchua que saía de sua garganta débil a acompanhar os acordes trêmulos de seu charango.

Fui perguntar o que havia passado com Dona Francisca, antiga moradora da casa amarela. Na verdade o que me movia não era o interesse pela simpática senhora que me vendia as garrafas de chicha que alegravam nossos fins de semana. Estava fascinado com a imagem daquele índio postiço que ao mesmo tempo parecia carregar tamanha sinceridade. Minha ânsia de rever aqueles velhos amigos se esvaiu por um momento de obsessão nessa figura taciturna. Foi difícil arrancar-lhe as palavras, mas me disse que não era dali, que vinha de outro país, não importava qual, mas que havia escolhido viver assim: simples, devoto da natureza e das tradições que não lhe ensinaram o berço e sim a vida.

Sua voz carcomida pelo tempo se fazia de difícil compreensão devido à grande quantidade de folha de coca que levava em sua bochecha para vencer o cansaço do dia de trabalho no campo. Sua cara enrugada escondia qualquer expressão de emoção. Dizia que quando tinha mais ou menos minha idade um senhor quase centenário lhe contara uma história sobre o encontro de dois gigantes da natureza. Conta que durante sua caminhada, lá do alto do seu esplendor, as montanhas andinas contemplavam como um condor o avanço dum tapete verde e intenso. Do outro lado a Amazônia se estendia correndo suave como um rio e assustou-se ao olhar para cima e ver que as montanhas estufam seu peito imponente. Ali no centro, comprimidos entre gigantes, a gente temia o conflito que poderia ser o fim para eles, tanto física como espiritualmente, já que o duelo entre gigantes traria o desequilíbrio que a natureza não poderia suportar.

E que cada dia viam avançar com mais intensidade um em direção ao outro, não podiam notar raiva ou qualquer sentimento de nenhuma das partes, só sabiam que havia uma força maior que dirigia tudo aquilo e que teriam que respeitá-la. Pediram ajuda dos deuses para que tudo acabasse bem e pudessem outra vez ter seu lar. Fugiram dali esperando o choque e se refugiaram à margem do rio.

Pensaram que em todo esse tempo de cultura e tradição em harmonia com a Pachamama já pudessem entender o que queria a terra mãe. Mas a surpresa foi grande quando viram chegarem-se tão perto os dois e que não houvesse nem um sinal de temor ou de inveja, puderam contemplar num camarote o cordial abraço de gigantes que durou um breve instante enquanto os dois terminariam por descansar suas forças em tranqüilidade, como um pós-orgasmo natural que os deixaria para sempre paralisados juntos nesse leito esplendoroso. Ali encontrariam a paz dos apaixonados, à sombra das árvores, ao conforto das montanhas.

Enquanto se abraçavam o verde grudava à pele da montanha e a floresta era levada às alturas pela inclinação de seu companheiro no mais sincero amor da natureza. Terminaria o centenário senhor dizendo que “o que o poder da natureza criou, o homem nomeou Chapare.”

Ainda jovem refletiu sobre as palavras desse senhor centenário e pensou porque ele mereceria menos crédito que uma televisão. Pensou nas tantas lendas e histórias que escutara esses tempos e percebeu que a verdade nada mais era que uma questão de crença. E que aquele lugar teria mais energia mais vitalidade que qualquer lugar onde o homem poderia construir seus prédios e chaminés que ocultariam o brilho das estrelas.

Não pude entender porque o senhor se levantaria de maneira tão bruta, antes de terminar de dizer sobre como havia sido sua chegada e adaptação ao lugar. Deu-me as costas e seguiu dedilhando seu charango uma canção tradicional. Antes que ele se perdesse entre uma estranha neblina que nunca havia estado ali antes, pude perceber a ponta da tatuagem que levava no pescoço, ninguém além de mim poderia ter aquele desenho do puma com seu olhar penetrante. Vi que mancava ligeiramente da perna esquerda e me lembrei das seqüelas do meu acidente automobilístico no ano passado. Acordei na minha cama suando e assustado. Me causou uma certa confusão perceber que aquele velho na verdade era eu.