Grito Literário

Friday, December 19, 2014

Joseph

Cabelos e bigodes brancos, assim como sua pele suíça. O branco é a união de todas as cores, como era ele, pintor e viajante, ganhando a vida pelo caminho, ocupando as ruas para logo encher de cores paredes de lares, tristes ou vivos, habitados por gente que ao contrário dele entendia a viagem como uma pausa e não como uma constante.

Constante era seu afinco, desde pequeno, pintando com o pai, cozinhando com a mãe. Poderia ter sido chef, mas preferiu pintar. “A fome de comida se mata com qualquer bocadilho, a fome de beleza é mais exigente”. Viajar não foi um sonho, foi natural, como quando criança saía a caminhar entre lagos e montanhas e distraído ia, simplesmente ia, com suas pernas frágeis e seu olhar curioso.

Caminhando e pintando passavam por seus olhos e pincéis paisagens e gentes, da África, da grande paixão asiática, Américas diferentes num só traço, sua Europa.

Encantada com tanto caminho e histórias, a jovem viajante não entendia como não podia deixar de notar aquela melancolia insistente no olhar de Joseph. “Se arrepende?” “Jamais!”, respondeu quase bravo, como se tivesse sido insultado.

“Faria de novo?”, perguntou a jovem soltando a fumaça do cigarro na pequena varanda do albergue. Ele respirou, baixou a cabeça. Voltou a erguê-la rapidamente, cravando suas pupilas azuis no brilho juvenil dos olhos de sua interlocutora. Disse que estava cansado. Que seus olhos se acostumaram, que já tinha visto de tudo, nada mais o surpreendia ou excitava no caminho. “Voltaria a viajar muito mais, mas com uma companheira, um amor. Para que através do olhar dela pudesse voltar a enxergar além e recuperar o brilho e o encanto que meus olhos já não conseguem ver”.

Javier

Ali, discreto aos olhos, inevitável aos ouvidos sensíveis, num canto do famoso Parc Guell, (en)cantava Javier. No cenário dos retorcidos arcos desenhados por Gaudí, o gênio catalão, o silêncio gentilmente cedia passo a Javier. Entre ventos sonava a voz, o tom, o toque, ele e o violão, dois corpos, dois sons, plena sintonia, quase um só.

Os turistas, que enchem a praça ali perto, são escassos nesse canto em que ele escolheu estar. Passam poucos e alguns incrivelmente não se detém diante daquela magia. Javier não é para qualquer um. É preciso perder-se para encontrá-lo. É preciso estrar distraído para senti-lo. Talvez lhe importasse menos ganhar dinheiro e mais tocar corações, e para isso era preciso ser discreto para pescar os corações mais sintonizados.

Eu simplesmente não aguentei. Fomos paralizados ao ouvi-lo. Fui inundando por dentro até transbordar. Daniela me deu um abraço que dura até hoje. As duas senhoras ao lado sentiam o mesmo. Éramos quatro corações em sintonia com o ritmo que emanava do coração-voz-violão de Javier, então uma coisa só.

Seu rosto peruano, seu timbre sem fronteiras. Dali seguiria para Alemanha e logo outros países.

Azar de quem não viu. Para cada um que se emocionou como nós, centenas estiveram perto mas não sentiram.

Fodam-se os senhores do mainstream, mas aquele sudaka fez sua turnê europeia. Tocando violão. Tocando corações.

Friday, December 12, 2014

Cacete!
O amor transbordou
e pingou no tapete
escrito "Bem-vindo".

 Todo dia, antes de entrar
terei que limpar
meus pés no amor.
Que lindo!

o pedreiro
construía
ia
foi
(des)pedido
ficou
(des)iludido

se proclamou
(des)pedreiro
se tornou
(des)temido
agora está
(des)construindo
indo

Escambo:

Troco poemas de gosto duvidoso
por afetos de efeito certeiro.

Escambo II:

Trocou olhos de jabuticaba
por espelhos da alma

O Mistério da Articultura há-de-ver-te:
Gentes que semeiam amor,
Comprem mais cestos
Vem chuva de abraços
Não vai caber a colheita.