Grito Literário

Saturday, June 05, 2021

O bicho geográfico

 

Caminho pelas ruas do centro histórico de São Luís como o bicho geográfico caminha por meu dedo mindinho do pé esquerdo: por vezes com retidão, em outro momentos faço curvas, não sigo mapas nem tenho plano algum para além de sentir a cidade, como o bicho sente minha carne pelos túneis em que vai cavando no mindinho.
 
Larva migrans é o nome científico dela. Homo sapiens é a espécie pela qual respondo com um misto de orgulho e vergonha.
 
Nos encontramos provavelmente nas areias de um rio de Alter do Chão, na Amazônia paraense. Eu hospedado na casa de Valfredo e sua família, ele vindo do intestino de um cachorro ou gato, que serviu de hospedeiro até encontrar a areia e logo meu pé, provavelmente enquanto assistia ao deslumbrante pôr-do-sol no píer do CAT, ou enquanto nadava depois de um passeio de barco pela Floresta Encantada, uma mata de igapó que inunda na época das cheias.
 
Passaram alguns dias ou horas e confesso que não percebia que ele havia decidido "pegar carona" nas minhas férias, como também o fez minha amiga Bruna De Oliveira, companhia das mais agradáveis. Foi no primeiro dia de barco entre Santarém e Belém que ele começou a dizer em forma de coceira: "ei amigo, estou aqui, estamos juntos nessa viagem". Hospedou-se no meu pé que por duas noites se hospedou numa rede recém comprada no mercado e pendurada junto a muitas outras no ferry boat Amazonas III, que partira pelas águas do Rio Tapajós até a grande metrópole da Amazônia.
 
Não sei bem como ele se alimentava, mas eu buscava dar boas condições de sobrevivência ao meu corpo que o hospedava, à base da culinária local: maniçoba, tacacá, suco de taperebá, cachaça de jambú, peixe frito com açaí, arroz de cuchá e muito mais.
 
Foi no auge de sua excitação que decidi começar a nossa despedida. A ardência grande de um bicho geográfico viajante palpitava quase a impedir minha caminhada. Bruna já havia partido e eu havia feito um novo amigo de Taiwan, com quem travava diálogos difíceis em inglês fraco e com sotaques distintos. Antes de encontrar com outras areias, as dos maravilhosos Lençóis Maranhenses, tomei coragem de comprar uma pomada, mesmo sabendo que a curta vida do amigo bicho chegaria ao fim em pouco dias naturalmente.
 
Na vila de Santo Amaro, às margens dos Lençóis, mais precisamente na pousada Fé em Deus, limpo bem o dedo e volto a aplicar pomada, enquanto a água da chuva torrencial para de cair e a população local corre para pescar nas ruas ainda alagadas repletas de peixes perdidos, presas fáceis.
 
Presa fácil também é o bicho geográfico no meu mindinho ante a pomada que o anuncia na embalagem como inimigo a combater. Ao contrário de cachorros e gatos, a Larva migrans não consegue chegar até o intestino dos humanos (Homo sapiens), assim como eu também não consegui chegar até a Ilha de Marajó, pois meu tempo de viagem era insuficiente.
 
Seus canais geográficos seguem no relevo do meu mindinho mas receio ainda não estar viva a larva migrante quando desembarcamos em São Paulo e o azeite de babaçu que comprei se solidifica diante da temperatura abaixo dos 25º C.
 
Chego ao Espírito Santo depois de uma viagem que passou por outros quatro estados, incluindo também Brasília em seu Distrito Federal. Em minutos o azeite volta a ser líquido e eu começo a suar com alegria.
Viagem pra mim é cultura e natureza. O que o Ocidente tentou separar como opostos, faço um esforço pra juntar. Carimbó, cacuriá, tambor de crioula, festa e ritmos que vêm da relação com o todo, a terra, as águas, os encantados, os seres viventes, essas gigantes ou minúsculas riquezas que compõe a Pachamama, Mãe Natureza.
 
Quando encontro a cultura popular me sinto humano, demasiado humano. Quando me vejo diante do esplendor da natureza, me sinto bicho. Um bicho geográfico.