Grito Literário

Monday, July 09, 2012

Tardor

São quase meia-noite e minha bicicleta desliza no asfalto molhado. As folhas secas pulam das árvores tentando me abraçar. Ao encontrar suas companheiras perto do chão, sobem, descem e giram nessa deliciosa valsa que é o outono. A noite sorri pra mim. O que posso fazer além de retribuir? Esqueço o frio. E sorrio.

As águas da chuva escorrem por um fio. Eu desaguo num amar. Sou rio.

Mesa de bar(celona)

I

Tem a cor do carvão e sinto que está em chamas por dentro. Parece estar atuando, o discurso sempre incendiado (ou incendiário?). Perguntei se era ator e ele disse que era "ator da vida". Usa óculos que são algo que sempre fazem alguém parecer mais inteligente. Ainda assim, parecia meio óbvio, ou ingênuo. Porém, não me importava tanto o que dizia mas como dizia. Tinha uma paixão de carne crua, língua de ponta cortante, coração de açougue, palavras de corpos desfeitos, estraçalhados...

Senti que temos linguagens diferentes, talvez distintas cosmovisões. Acho que não pensamos igual, nem vemos o mundo da mesma maneira. Mas percebi que temos uma coisa parecida de fogo, ou melhor, de brasa, que quer incendiar e que pede pra ser incendiada. Na verdade, ele parece meio doido, por seu pensamento abstrato. Me fez lembrar, guardadas as proporções, aquele morador de rua paulistano que uma noite na Rua Augusta me disse que o Japão na verdade era Júpiter mas que havia uma conspiração para que não soubéssemos. Eu sempre me sinto muito ignorante e fracassado quando não consigo alcançar um pensamento, ainda que todas pessoas "normais" digam que tal pensamento não tem sentido ou que é loucura. A normalidade é sempre uma incompletude.

Ele, o da cor de carvão e chamas por dentro, tinha alguma história de que se envolveu com o sindicalismo e teve que fugir de seu país porque senão o matavam. Mas não parece alguém que pudesse caber num sindicato.

Tem a cor do café, boca de creme e os olhos de açúcar mascavo. Fala com sabor e seu dizer é tão quente que como que nos queima a língua e não nos permite perceber o quão doce deveriam ser suas palavras.

Parece alguém que não se vende. Mas é apenas alguém que vende. Tem uma loja e vende café. E vender café é como compartilhar sua pátria, a tão humana Colômbia. E ajudar a construir a tão colombiana humanidade.

II

É boliviano, da parte de onde não vem ninguém. Pando é o Acre da Bolívia, insópido, longínquo, selvagem, desabitado. Na verdade o Pando e o Acre são quase a mesma coisa, já o foram de fato, até que fizemos uma guerra, ou revolução, não sei bem, ganhamos, pacificamos, fizemos acordos pagamos algo e ficamos com aquilo que acreditamos ser um "pedaço de nada". Que os de lá devem chamar de pedaço de tudo.

Tem um rostro de gente simples, talvez coubesse num quadro de Tarsila entre aqueles operários, quase negros, quase índios, quase brancos, nem jovens nem velhos. Mas ele não é operário, ao contrário, é o pintor.

Isso de pintar as pontes, rios, casas, naturezas, vivas e mortas, coisas bonitas e agora que tá na Europa e tal. Não não, tem as cores da sua terra. Caucho é como chamam a extração da borracha lá do outro lado da fronteira. Na verdade, não sei bem, borracha mesmo se chama goma em espanhol, talvez caucho signifique seringueira, ou seja borracha mesmo. Então, é isso que ele pinta. Ele pinta o que o capitalismo vê da selva de uma maneira que o capitalismo não vê na selva, um colorido além do monocromático verde do dinheiro e da florestas que os miopes olhos de fora enxergam.

O mais legal de tudo é que ele diz que conheceu Chico Mendes nessa história de pintar as cores de seringueiros e seringuais. Nesse dia ele deve ter apertado a mão do Chico e com isso deve ter ficado até hoje guardado, grudado ou pregado no corpo e coração dele um poquinho desse sentipensamento de ser também um herói da Amazônia, em qualquer lugar que esteja.

III

Equatoriano, de Guayas. Ali na costa do Equador, capital Guayaquil. Elegância, terno cinza que não combina com a cara de indígena. Pareceu o menos interessante dos três.

Os três tem uma associação, não sei porque nem pra quê. Todo mundo tem uma associação hoje em dia. Ao menos na Europa é assim. Parecia mais que tudo um fã e seguidor do vendedor de café colombiano. Repito que não parecia um cara interessante. Mas talvez sua maior sabedoria se guardasse em seu silêncio.

IV
Ele é aposentado. Trabalhou toda vida abaixo d'água. Ninguém totalmente normal pensa em ser mergulhador, eu acho. Nem em ser piloto de avião. Normal é querer trabalhar num escritório. Mergulhar é voar pra baixo, então dá no mesmo. É algum sonho estranho que nasce dentro e fora da gente ao mesmo tempo. Tá, não é a mesma coisa ser mergulhador do Discovery Channel que limpador de submarinos, é mais técnico que artístico. Mais ninguém sobe um Everest ao contrário mergulhando só pra ganhar dinheiro, eu acho. Não consigo deixar de imaginar um submarino cheio de nazistas dentro tomando cerveja e um cara lá do lado de fora com roupa de mergulho esfregando com uma pequena bucha o fundo do robusto veículo. Nem deve ser assim. Mas se foi, é coisa do passado.

Ficou velho, e seu rosto adquiriu rugas quase impressionistas. Sua voz carcomida é quase ininteligível. Já não pode ir tão fundo, nem no mar nem na cama. Então, depois de velho, quem diria, decidiu (ou teve que) submergir. Subiu a superfície definitivamente, não sei se já se esqueceu do fundo do mar ou sente saudades ou se ainda às vezes vai lá encontrar-se com ele.

Depois de velho teve que subir do fundo do mar e decidiu se dedicar à vida de cima. Depois de velho decidiu ser jovem, talvez pela primeira vez ou talvez como sempre foi por toda vida. Quer ajudar índios que não conhece, que vivem em terras que não conhece cercados de mares onde nunca esteve. Se bem que ainda que os dois continentes não se toquem, os mares e rios estão todos conectados. E talvez cada mergulho seja uma conexão secreta, molhada e silenciosa com todo o planeta que chamamos Terra mas que deveríamos dizer-lhe Água.

V
Catalã, de Mataró, uma cidade que me dá a impressão de ser "a capital secreta do mundo" na versão daqui. Suas histórias são tão incríveis que às vezes parece mentirosa, ou contadora de contos, que é uma maneira mais honesta, solidária e divertida de mentir. Mas desconfio que é tudo verdade porque parece que com os anos ela vem abrindo radicalmente os poros da alma. E pode enxergar ventos que às vezes não conseguimos nem sentir.

Pôr uma gota de alma em cada minuto, palavra e atitude é algo que dói ao contrário, é um riso que machuca mas vale a pena. "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena". Ela viajou por viajar, sem buscar nada exatamente. Mas encontrou um tesouro. Encontrou a si mesma na amazônia equatoriana. Agora luta para ser ela mesma, nesse organizado caos da próspera e desumana vida das grandes cidades, que não impede o transbordo do oceano de alma índia que vai se descobrindo. E agora em Barcelona estuda kichwa. Parece solidariamente uma forma de compreender melhor a cultura dos outros. Mas, no fundo, é um saudável egoísmo: busca conhecer melhor a si mesma. Busca sua essência que havia sido ocultada, por décadas de sua vida e por cinco séculos de colonialismo.

VI
Ele é brasileiro e gosta de reparar gentes. Escreve. Como o poeta do minha-pátria-é-minha-língua escrever é sua melhor maneira de estar sozinho.

VII
Tudo isso numa única mesa de bar.

Barcelona,
alguma sexta-feira de maio de 2011
O metrô fecha às duas.
Fecha a conta que é hora de voltar pra solidão do lar.

Pessoas que alimentam pombos

"Yo no te pido que me firmes
 

diez papeles grises para amar
 

sólo te pido que tu quieras
 

las palomas que suelo mirar."
 (Pablo Milanés)

O sol se encolhe preguiçoso e deixa sua cor espirrar distraidamente na superfície do Rio Douro. A tarde nunca cai na cidade do Porto, apenas desliza suavemente entre ruas estreitas e odores de vinho. Num prelúdio de noite dominical, a ladeira parece menos íngreme que quando desci e saltito entre as vazias ruas de paralepípedo como se fosse a superfície lunar. Dialogo com o comércio charmosamente decadente, que mesmo fechado me acompanha até encontrar a Igreja lá encima. Solitários, os belos azulejos externos são quem me miram, carentes e sedentos por distraídos olhos turistas.

Ao lado, numa esquina meio suja, onde o lixo no chão se complementa com os feios cartazes de um colorido deteriorado pelo sol, uma velhinha feia alimenta aos pombos feios. Não sabia que elas realmente existiam, a última vez que as vi foi num filme. Mas ao contrário de Macaulay Culkin, não tive medo da velhinha feia. Passando a alguns metros daquela aprazível conjunção de feiúras, ensaiei um sorriso que mesmo mudo ecoava nas ruas completamente vazias. Ela não me viu. Seguiu sorrindo para seus pombos, que saltavam e bicavam desesperadamente os grãos de qualquer coisa.

.......

Passaram meses e outro domingo se vai. A Avinguda Meridiana corta silenciosamente o pacato bairro residencial do Clot, em Barcelona. Os poucos carros passam zumbindo diferente, talvez em catalão. Entre as duas pistas, no meio delas, um grande espaço para pedestres. O céu que amanhecera azulão para alegrar a gente já não faz tanta questão de brilhar, se deixa esbranquicar e vai se apagando em tons de laranja. Seguindo as linhas do asfalto e da visão se confundem viadutos de um velho futurismo com uma abortada e inglória praça semi-abandonada que leva o magnífico nome de Plaça de les Glories Catalans.

E mais um domingo que se deita tranquilamente no bairro, longe do zumzumzum ininterrupto do centro da cosmopolita capital catalã. Pode ser que eles só apareçam nos fins de domingo. Ou que saiam todos os dias, a mesma hora, ou na hora em que podem. Mas eu os vejo apenas aos domingos antes que o sol saia. Talvez porque há menos gente e carros passando ou porque estou mais atentamente distraído para notá-los quando levo essa alegre tristeza melancólica dos fins de domingo. Eles vem em todas formas, não são só velhinhas. Esse era um mano, talvez espanhol moreno andaluz, talvez latino. Casaco verde, talvez adidas, talvez falsificado. Boné também verde, combinando, daqueles meio aba reta, talvez do Yankees, talvez made in china, talvez os dois.

Eu andava em bicicleta buscando céus bonitos e paisagens que já conhecia, sentindo ventos, beijando o discreto frio de outono. Ele, talvez mais novo, talvez da minha idade, fazia algo mais útil: com seu saquinho alimentava pombos, com milho ou sei-la-o-quê.

Tive vontade de parar e perguntar-lhe: porque você alimenta pombos? Todos meus amigos de minha idade odeiam pombos e alimentariam eles apenas com pedradas. Pensei que ele poderia responder com uma grande filosofia e dar-me uma lição de vida, ou apenas dizer algo muito pouco poético, como "porque gosto de pombos e não tenho o que fazer".

Mas não. Segui pedalando o domingo e ele alimentando pombos.

Pensei que os pombos são os únicos habitantes de nossas cidades que não abandonam as ruas aos domingos. E pra felicidade deles, quando as pessoas e seus restos de comida abandonam as ruas, ali estão os alimentadores de pombos com seus saquinhos de solidariedade.

Me livro

Deus me livre!

Virar linhas em papel?

Escrever um livro

pro corpo morrer,

a alma subir ao céu,

e eu continuar vivo?

Friday, July 06, 2012

Ciclos


Um homem tentará ser
constante lua cheia
e sol desbordante
de eterno verão.
Estará fadado a fracassar
Se autoflagelará
na infrutífera busca
da força constante
e da vida imortal

A mulher em sua sábia
fragilidade guerreira
entende seus ciclos:
sabe minguar em seu outono,
ser nova em seu inverno,
crescer em sua primavera,
ser cheia em seu verão.

O homem ainda não entendeu
que seu projeto de infalibilidade
era natimorto.
Algum dia Adão sucumbirá
à sua própria costela.

Deus nasceu mulher
Pariu o mundo em seis dias
Descansou no sétimo
E menstruou no vigésimo oitavo.

Não te amo


Tu sabes que
o que eu amo
na verdade
é o modo insano
com que amas
a liberdade